#29 “O fetichismo da mercadoria é apenas aparência”

Uma das teses centrais (e também das mais relevantes e audaciosas) da teoria científica do valor apresentada por Karl Marx é a do fetichismo da mercadoria. Essa expressão, todavia, tem recebido diversas interpretações, a maioria delas sem fazer jus à profundidade e à importância do conceito. A visão mais comum deriva da simples compreensão do que sejam valor de uso e valor de troca.

Como vimos em outro pitaco, essas são propriedades de toda mercadoria. O valor de uso diz respeito ao atributo que a mercadoria tem de ser útil, ou seja, de atender a necessidades humanas, e o valor de troca a qualidade dessa mesma mercadoria de ser trocável por outras mercadorias. Atente-se para o fato de que o valor de uso é uma propriedade intrínseca à mercadoria, ou seja, um atributo identificável no corpo mesmo da mercadoria, enquanto o valor de troca só aparece quando ela se confronta (no mercado) com outra mercadoria. O valor de uso de uma mesa, por exemplo, se consubstancia em sua própria forma de mesa, nas qualidades materiais específicas que ela detém para atender às necessidades humanas enquanto mesa. Seu valor de troca, contudo, só aparece quando ela se relaciona com outra mercadoria, e se diz que uma mesa vale, por exemplo, quatro garrafas de vinho – ou seu correspondente em dinheiro, digamos, duzentos reais. Como também sabemos de outros pitacos [#5, #6, #7], os infinitos valores de troca possíveis de uma mercadoria expressam, na verdade, cada um deles, o valor dessa mercadoria, que é produto de relações sociais próprias, envolvidas na compra e venda da força de trabalho e a aplicação (e exploração) desta no processo de produção.

Não é assim, todavia, que o senso comum percebe as coisas. Na aparência, o valor de troca (valer quatro garrafas de vinho ou duzentos reais, ou etc., no caso de nosso exemplo hipotético) apresenta-se como se fosse uma propriedade intrínseca à própria mercadoria. É como se – da mesma forma que seu valor de uso, configurado por suas propriedades físicas – o valor de troca fosse atributo dela própria, não o resultado de relações sociais de produção. Uma coisa inanimada, portanto, esconde as relações humanas das quais ela é resultado. Nisso, pois, consistiria o fetichismo da mercadoria, metáfora tirada do mundo das crenças, em que, um objeto enfeitiçado exibe propriedades humanas. Algo que é resultado da relação entre pessoas aparece como se fosse o resultado de relação entre coisas.

É claro que essa visão, por si só, já traz uma contribuição importante para a compreensão da verdadeira origem do valor, combatendo, assim, a alienação intelectual do senso comum que não percebe a exploração humana por traz do processo de produção de mercadorias sob o capitalismo. Mas esse entendimento não esgota em absoluto toda a riqueza e poder de desvendamento da realidade que encerra o conceito de fetichismo da mercadoria elaborado por Marx. Em primeiro lugar, não se trata apenas de uma questão de consciência da realidade. Por isso, a alienação imposta pelo capitalismo não se resolve da mesma maneira que a alienação religiosa, por exemplo. Nesta, o homem cria deus e acaba invertendo a relação, ao tomar esse deus como seu criador. Para livrar-se dessa alienação, basta a tomada de consciência da realidade, por meio da razão e da ciência. No caso do fetichismo da mercadoria, todavia, não basta (embora exija) a consciência da realidade: é preciso transformá-la materialmente.

Assim, a negação do fetichismo não pode dar-se apenas pela recusa em aceitar a hipótese de a mercadoria ter uma propriedade intrínseca. É verdade que o valor não é uma propriedade dela mesma, e sim o produto de relações sociais, mas é verdade também, não uma ilusão, que, ao expressar o valor, a mercadoria adquire o poder real de mover relações sociais. A teoria científica do valor evidencia que, na sociedade capitalista, não apenas as relações humanas são ocultadas por relações entre coisas, mas o fato mais grave ainda de, nessa sociedade, as relações sociais de produção assumirem elas mesmas a forma de coisas e só se expressarem por meio de coisas.

Para entender esse fenômeno, é preciso compreender os dois processos que o constituem e que se apresentam intimamente relacionados. O primeiro é a “materialização das relações sociais de produção” que pode ser também chamado de “reificação” ou coisificação (do Latim, res, rei = coisa), pois trata-se de uma relação social que se “coisifica”. Nesse processo, as relações de produção se materializam em coisas, ou seja, as relações sociais entre capitalistas e operários, por exemplo, conferem às coisas pelas quais elas se estabelecem, suas próprias características sociais.

Na sociedade capitalista, a divisão social do trabalho – ou seja, o processo pelo qual a vida é produzida socialmente, cada qual realizando um trabalho que se soma aos demais para compor a vida material de cada um – não se realiza por via da troca direta desses produtos entre seus produtores. O trabalho numa sociedade mercantil não é diretamente social. Como já vimos, cada produtor privado, ao produzir para a troca, imprime nesse trabalho um caráter duplamente social porque, primeiro, produz uma mercadoria para outrem e, segundo, pretende, com essa mercadoria, ter acesso a outras mercadorias que ele não produz. Mas essas relações sociais não são realizadas diretamente entre pessoas, mas sim por meio das mercadorias por elas produzidas. São estas que se trocam entre si, expressando as relações que nelas se coisificam. Por isso, a exploração da força de trabalho, por exemplo, fica disfarçada sob a aparência da simples venda, compra e usufruto de uma mercadoria.

Como se vê, o fetiche não consiste tão somente numa ilusão. As relações humanas de fato se materializam em coisas, fazendo com que essas coisas assimilem as qualidades inerentes às relações que elas expressam. A mercadoria, assim, adquire uma forma social, ocorrendo, com isso, o segundo processo constitutivo do fetichismo da mercadoria, que é a “personificação das coisas”. Aqui as coisas adquirem o poder de estabelecer relações entre as pessoas, ocorrendo, como sintetiza Marx, “relações materiais entre pessoas e relações sociais entre coisas”. É assim que os seres humanos perdem a condição de sujeito em suas relações, as quais passam a ser regidas cada vez mais integralmente pela troca de mercadorias. Se lembrarmos que o dinheiro é a mercadoria por excelência, capaz de simbolizar e substituir todas as demais, fica fácil compreender por que o dinheiro passa a comandar tudo na sociedade em que vivemos. Ao generalizar-se o modo de produção capitalista, a reificação das relações entre as pessoas acaba por invadir as mais recônditas esferas da vida individual e coletiva. Mesmo as mais caras relações pessoais como amor, sexo, gosto estético, saúde, amizades, crenças, etc., coisificam-se dando protagonismo à mercadoria dinheiro.

Como, ao “personificar-se”, a mercadoria empresta àquele que a possui seu poder de estabelecer as relações, o que vale não é a pessoa, mas o que ela tem e o quanto tem. O poder do grande proprietário, o capitalista, por exemplo, não vem de sua personalidade ou de suas qualidades individuais, mas do valor incorporado em seu capital pelo esforço dos trabalhadores. Não é incomum ocorrer de um indivíduo medíocre e ignorante encher-se de glória e prestígio advindos da posse do dinheiro, que a ele transfere a riqueza e o poder resultantes da exploração capitalista. Basta subtrair-lhe essa propriedade para que se revele toda sua natural mediocridade e irrelevância.

Para se ter uma ideia aproximada da importância do conceito marxiano de fetichismo da mercadoria, basta imaginar qual seria a atitude dos trabalhadores se soubessem que cada gota de seu suor e cada minuto de seu tempo gastos no trabalho forçado que realizam contribuem inapelavelmente para aumentar o poder de quem os oprime, tirando proveito de sua condição de não proprietários dos meios de produção.

Vitor Henrique Paro, 17/09/2020

Se notar alguma ideia ou tema que você considere mal abordado ou que exija maior explicação,
me comunique, por favor. Terei prazer em considerar sua observação.

 

COMPARTILHE

Logomarca do Vitor Paro

CONSULTE TAMBÉM

COMENTÁRIOS

4 Comentários

  1. Mariana Saliola

    Textos brilhantes! Muito obrigado por tantos conceitos.

  2. Estela Pereira

    Conceito marxiano da maior importância, apresentado com a clareza do Professor Paro!!
    Essa elucidação tem grande contribuição, uma vez que se pode observar no senso comum, uma fetichização do próprio conceito de fetichismo, quando compreendido como um “encantamento” que as mercadorias exercem diretamente sobre o consumidor, estimulando seu “desejo” de consumo (resultado muitas vezes das conexões que a cultura de massa e a propaganda fazem entre produtos – mercadorias – e aspectos emocionais e simbólicos, já construídos socialmente). Dessa maneira, explica-se equivocadamente o fetichismo da mercadoria numa relação novamente mercadológica, (entre produto e consumidor), quando na verdade, Marx faz uma grande revelação comprovando cientificamente que é a força de trabalho que produz valor e que as relações sociais entre capital e trabalho são “fetichizadas” nas mercadorias, no mercado concebido segundo a economia liberal. É disso que se trata o conceito. Muito obrigada, Professor!

  3. Carlos Roberto Medeiros Cardoso

    Que final de texto maravilhoso, deixa claro toda a opressão e reificação impostas pelo capital as relações sociais, parabéns.
    👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾👇🏾
    Como, ao “personificar-se”, a mercadoria empresta àquele que a possui seu poder de estabelecer as relações, o que vale não é a pessoa, mas o que ela tem e o quanto tem. O poder do grande proprietário, o capitalista, por exemplo, não vem de sua personalidade ou de suas qualidades individuais, mas do valor incorporado em seu capital pelo esforço dos trabalhadores. Não é incomum ocorrer de um indivíduo medíocre e ignorante encher-se de glória e prestígio advindos da posse do dinheiro, que a ele transfere a riqueza e o poder resultantes da exploração capitalista. Basta subtrair-lhe essa propriedade para que se revele toda sua natural mediocridade e irrelevância.

    Para se ter uma ideia aproximada da importância do conceito marxiano de fetichismo da mercadoria, basta imaginar qual seria a atitude dos trabalhadores se soubessem que cada gota de seu suor e cada minuto de seu tempo gastos no trabalho forçado que realizam contribuem inapelavelmente para aumentar o poder de quem os oprime, tirando proveito de sua condição de não proprietários dos meios de produção.

  4. MARCIA SARAIVA PRUDENCIO

    Professor, senti falta do NEBA “Não é bem assim ”
    Excelente texto. Faço aqui uma correlação de que acaba que o que vale não é a pessoa, mas o cargo que ela ocupa em uma empresa ou setor publico.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *