#5 “O valor de uma mercadoria é tão somente resultado da concorrência”

A crença de que o valor de qualquer mercadoria depende tão somente da chamada lei da oferta e da procura é um dos casos mais extraordinários de ignorância coletiva que atinge vários bilhões de habitantes pelo mundo afora. Aceita-se isso com a mesma segurança inabalável com que durante milênios se acreditou que o Sol girava ao redor da Terra. Mas não é bem assim [Neba]. A melhor maneira de negar essa crença é procurar compreender de forma rigorosa o que, de fato, faz com que as coisas tenham valor econômico. Alerto, desde já, que esta não é uma empresa fácil, embora esteja ao alcance de qualquer inteligência mediana. Um esforço imprescindível a ser feito é o de renunciar à cômoda ingenuidade diante das aparências e de procurar ver com maior acuidade os fenômenos que nos cercam. Em nosso cotidiano, por exemplo, a oferta e a demanda que regem a subida e descida dos preços nos faz pensar que é aí que reside a origem do valor das mercadorias. O que a reflexão crítica nos faz ver, entretanto, é que, para haver essa oscilação, é mister que haja um valor inicial. O que é esse valor e o que o determina é o que cumpre esclarecer.

Podemos começar dizendo que toda riqueza na sociedade capitalista se apresenta sob a forma de mercadoria, que é o verdadeiro recipiente do valor. Por sua vez, toda mercadoria possui duas propriedades características: valor de uso e valor de troca. Valor de uso é a propriedade que a mercadoria tem de atender a necessidades humanas. O valor de uso de um lápis, por exemplo, é servir para escrever. Neste sentido, valor de uso pode ser considerado simplesmente sinônimo de utilidade. Apesar da presença dessa palavra “valor” na expressão, o valor de uso não é uma grandeza econômica. Toda mercadoria tem necessariamente valor de uso, mas não precisa ser mercadoria para ser portador de valor de uso. O ar que respiramos, por exemplo, tem um valor de uso (uma utilidade) enorme, mas não é mercadoria. O valor de uso representa, assim, uma relação subjetiva entre o homem (que valora) e uma coisa (que é valorada), não é, pois, uma relação social. Podemos também usar a expressão “valor de uso” como sinônimo de coisa útil ou a própria coisa útil em si: posso, por exemplo, me referir ao “valor de uso mesa” ou considerar “a mesa como valor de uso”.

O valor de troca, por sua vez, é a propriedade que a mercadoria tem de ser trocável por outra mercadoria. Dizemos, então, que a segunda é o valor de troca da primeira. Se 1 mesa se troca por 4 garrafas de vinho, dizemos, então que 4 garrafas de vinho são o valor de troca de 1 mesa. Diferentemente do valor de uso, o valor de troca expressa uma relação social, pois a troca é uma relação entre possuidores de mercadorias de valores de uso diferentes. Observe que, quando dizemos que 1 mesa se troca por 4 garrafas de vinho, estamos utilizando o valor de uso de uma mercadoria (vinho) como valor de troca de outra (mesa). Ademais, assim como ocorre com a expressão “valor de uso”, também a expressão “valor de troca” pode designar tanto a propriedade de uma coisa quanto a própria coisa. Então, ao considerar o valor de troca da mesa, podemos também nos referir ao “valor de troca mesa” ou à “mesa como valor de troca”.

Obviamente, na vida prática moderna, não se usa trocar mesas por garrafas de vinho, porque contamos com o dinheiro para mediar essa transação, o que não acontecia historicamente antes do surgimento da moeda. Mesmo assim, continuaremos a utilizar esse recurso em nossos exemplos para facilitar a exposição. Não nos esquecendo que, para todos os efeitos, o próprio dinheiro é uma mercadoria, pois possui valor de uso (servir como meio de troca) e valor de troca (ser trocável por outras mercadorias).

Voltando a nosso exemplo, podemos inverter a operação e dizer que 1 garrafa de vinho se troca por 1/4 de mesa. Agora é o valor de uso mesa que exerce a função de valor de troca do vinho. Podemos continuar, expandindo o exemplo, e dizer que 1 mesa se troca por 20 quilos de batatas, ou por 2 gravatas, ou por 3 ingressos no teatro, ou por R$ 100,00, e assim por diante, porque sabemos que, nas devidas proporções, todas as mercadorias se trocam entre si. A mercadoria mesa não tem portanto um, mas infinitos valores de troca. Observamos, assim, que, diferentemente do valor de uso, que é uma qualidade intrínseca da mercadoria, o valor de troca de uma mesma mercadoria muda inúmeras vezes, de acordo com a outra mercadoria com a qual ela se relaciona.

Além disso, se uma mesa se troca por 20 quilos de batatas, e uma mesa se troca por 2 gravatas, conclui-se que 20 quilos de batatas se trocam por 2 gravatas, podendo esse raciocínio aplicar-se generalizadamente para o conjunto infinito de valores de troca de uma mesma mercadoria e dizer que todos eles são trocáveis entre si nas respectivas proporções. Vemos, assim, que os valores de troca de uma mesma mercadoria expressam, todos, o mesmo significado. Logo, nas diferentes mercadorias há algo em comum, cuja grandeza é expressa no valor de troca. A esse algo em comum chamamos de valor. O valor de troca só pode ser, portanto, a maneira de expressar-se de algo que dele se distingue e que é homogêneo em todas as mercadorias. O valor de troca, nada mais é, portanto, que a expressão do valor.

É preciso insistir nessa diferença entre valor de troca e valor. Não são a mesma coisa, como acreditam alguns intelectuais “marxistas” que, pelo visto, não leram com atenção sequer o primeiro capítulo de O capital, de Marx. O valor de troca é uma mercadoria concreta, utilizada para expressar o valor contido em outra mercadoria; o valor é uma categoria abstrata, produto de complexas relações sociais, como veremos a seguir, por isso “é invisível aos olhos” e só pode vir à luz na forma do valor de troca. Uma mercadoria pode ter infinitos valores de troca, mas um só valor, que é expresso por cada um desses valores de troca. A ignorância desses conceitos ou a má compreensão da diferença entre ambos pode favorecer a crença na falácia liberal de que é a razão entre oferta e procura que dá origem ao valor. Quando, por exemplo, acontece de o valor de troca de determinado bem ou serviço variar significativamente como resultado de especulações pontuais (disparidade entre oferta e procura), isso não significa que, em termos sociais globais, seu valor seja necessariamente afetado.

Nosso raciocínio até aqui levou-nos à constatação de que o valor é: a) comum a todas as mercadorias, e b) homogêneo, “igual”, em todas elas, a ponto de permitir que sejam trocadas entre si, de acordo com sua equivalência. Agora, por mais que examinemos e lancemos mão de todos os mecanismos possíveis de investigação científica, verificaremos que a única coisa que existe de comum em absolutamente todas as mercadorias é o fato de serem produtos do trabalho humano. Só pode ser, portanto, o trabalho o que produz o valor. Falta, certamente, examinar a real homogeneidade desse trabalho, pois, à primeira vista, parece que não existe. Examino essa questão no pitaco sobre o trabalho abstrato.

Mas, desde já, não há como negar: a oferta e a procura fazem variar o preço da mercadoria, mas quem produz seu valor é o trabalho. Revela-se, assim, a tremenda injustiça do capitalismo: quem constrói o mundo e sua riqueza, com seu esforço – e empenho da própria vida –, é dominado pelos que possuem a propriedade privada dos meios de produção e nada fazem a não ser viver à custa da exploração do outro. Essa é a verdade insofismável, que paira acima de qualquer ideologia. Levada na devida conta, mudaria o mundo.

Vitor Henrique Paro, 18/01/2020

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COMENTÁRIOS

5 Comentários

  1. Claudomiro Santos

    Parabéns prof. Vitor, todas as pessoas deveriam refletir sobre o fenômeno que cria o valor = o trabalho humano.

  2. Kennedy José de Paula

    Professor Vitor
    A ler o trecho abaixo pergunto: não seria mais correto trocar a palavra MERCADORIA por CATEGORIA?

    “O valor de troca é uma MERCADORIA concreta, utilizada para expressar o valor contido em outra mercadoria; o valor é uma categoria abstrata, produto de complexas relações sociais, como veremos a seguir, por isso “é invisível aos olhos” e só pode vir à luz na forma do valor de troca.”

    1. Vitor Henrique Paro

      Olá, Kennedy. Obrigado por sua sugestão e por sua boa vontade em colaborar. Na verdade, tanto uma forma quanto a outra estão corretas, mas o uso de “mercadoria” nesse caso é mais adequado. Fiz isso intencionalmente, com a finalidade didática de levar o leitor a ter o valor de troca não apenas como categoria teórica, mas como algo concreto no corpo da própria mercadoria. Um forte abraço.

      1. Kennedy José de Paula

        Obrigado pelo esclarecimento Professor Vitor Paro

  3. Marcia Saraiva

    O texto é de grande importância para meu crescimento profissional e acima de tudo enquanto pessoa.

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