Porque, no capitalismo, o trabalhador não é obrigado, por nenhum constrangimento legal, a servir a um empregador determinado, tendo inclusive o direito de ter sua atuação regida por um contrato entre as partes, costuma-se considerar que, nesse regime, o trabalho é livre. Na verdade, não é bem assim [Neba]. Já afirmei, em outra oportunidade, que esse é, na verdade, um dos mais importantes contos do vigário utilizados pelo capitalismo para camuflar a real condição do trabalhador. Karl Marx ironizou esse sofisma, dizendo que o trabalhador capitalista é realmente “livre” em duplo sentido. Primeiramente, livre de qualquer propriedade de meios de produção, de tal sorte que só pode produzir sua existência material submetendo-se às condições de quem os detém; e, em segundo lugar, livre para escolher, entre os candidatos a explorá-lo, aquele a quem ele vai se submeter.
Ser livre é ter poder de opção. A liberdade é o oposto da necessidade. Esta vigora no domínio da Natureza, é tudo aquilo que acontece necessariamente, independentemente da vontade e da ação de um sujeito. Costumamos dizer que o pássaro é livre para voar. Neba. O pássaro não tem liberdade, ele necessariamente voa. Quem tem a liberdade de voar é o homem, porque pode optar entre voar e não voar. E essa liberdade foi construída por ele, pelo trabalho. E aqui aparece bem o mais importante do tema. A liberdade não é natural, é histórica. É algo produzido intencionalmente pelo homem. E este o faz por meio do trabalho. Liberdade não se dá, liberdade não se recebe, liberdade também não se conquista: liberdade se constrói – pelo trabalho. Não estamos falando aqui de simples licença, ou permissão para agir, estamos falando daquilo que nos afasta (nos livra) da fatalidade, da necessidade natural. Antes, por exemplo, o homem fatalmente, necessariamente, tinha que vencer grandes distâncias a pé. Hoje ele tem a liberdade (poder de opção) de ir a cavalo, de carroça, de automóvel, de navio, de avião, de foguete. Nada disso é natural (nem mesmo a domesticação do cavalo, diga-se de passagem). Tudo é produto da atividade humana, ou seja, do trabalho, “atividade adequada a um fim”.
Contrariamente ao que propala a maioria das religiões, o trabalho em si não é nenhum castigo. Ele é, em vez disso, a marca da liberdade humana. Movido por valores que cria, o homem plasma determinado objeto, transformando-o no produto estabelecido como fim. Ao fazer isso, eleva-se à condição de sujeito, despregando-se da necessidade natural, e fazendo a história. A liberdade supõe aqui a) a propriedade de seu corpo, b) a autonomia na ação e c) o direito ao usufruto de seu labor. Como resultado da aplicação da força de trabalho, tal produto constitui a própria extensão de si. Assim, o trabalhador, o trabalho e o produto constituem um todo indiviso em sua interdependência. Isolar um desses elementos como faz o capitalismo, apropriando-se do produto do trabalho, é arrebatar do trabalhador uma parte de sua própria individualidade. É cindir a unidade da individualidade humana, é alienar o criador de sua criatura. É a essa separação que se refere quando se diz que o trabalho capitalista é alienado. Ele não é alienado simplesmente porque é dividido. A divisão técnica (pormenorizada) do trabalho é compatível com o trabalho livre. A verdadeira alienação (cisão) se dá quando o trabalhador é separado de sua obra. Sob o capitalismo, é, inclusive, esta cisão que determina a divisão técnica desumana que verificamos hoje. Sob a falácia do trabalho (capitalista) livre, o liberalismo (Eta termo mais impróprio!) confunde liberdade (histórica) com licença para oprimir, usurpando do trabalhador o direito a sua própria integridade, e impondo o trabalho forçado.
Mesmo sem entender muito de Economia Política, é possível perceber com muita clareza a natureza forçada do trabalho capitalista, se o compararmos com um trabalho efetivamente livre, ou seja, um trabalho em que a propriedade dos meios de produção garanta ao trabalhador a propriedade inteira de seu produto.
Pense num exemplo trivial em que você se põe a fazer um bolo em sua casa para servir-se dele ou servi-lo a seus familiares e amigos, ou até mesmo para vendê-lo. Na situação, imagine que você é o proprietário dos meios de produção: matéria-prima (farinha, ovos, açúcar, demais ingredientes) e instrumentos de produção (batedeira, forma, fogão, etc.). Aqui você tem acesso livre (não apenas permissão, sob condições impostas por outrem) às condições objetivas de trabalho. Você aplica sua força de trabalho (sua energia física mais seus conhecimentos e habilidades culinárias) e tem como resultado um produto que lhe pertence. Esse produto é como uma extensão de você mesmo, e não é alienado de você por vontade alheia. Seu trabalho, em tudo, se configurou uma atividade verdadeiramente livre. Seu motivo para trabalhar era o próprio trabalho e seu produto concreto, o bolo. Essa operação o faz sentir-se realizado. Não se trata, portanto, de fugirmos do trabalho, mas de realizar um que nos engrandeça.
Compare agora com uma situação em que você é assalariado ou assalariada numa fábrica de bolos sob o modo de produção capitalista. Abstraiamos a divisão pormenorizada do trabalho que normalmente existe numa fábrica moderna, e suponhamos que você realize o mesmíssimo trabalho concreto, isto é, utilize os mesmos meios de produção e o mesmo procedimento que utilizou em casa para fazer o seu bolo. Por mais que tudo pareça igual, uma coisa importante mudou: a forma social a que o trabalho se submete. No primeiro caso, o produtor (você) era o proprietário dos meios de produção. Ali você tinha o acesso direto (livre) ao seu motivo (o bolo). No segundo caso, o proprietário é outro, a quem você vende sua força de trabalho. Aqui sua motivação é extrínseca ao próprio trabalho. Você é forçado a fazer o bolo como condição para ter acesso a seu verdadeiro motivo: o salário.
Assim acontece com todo trabalho capitalista: o trabalhador não é explorado por sua vontade livre, mas porque, ao não ter acesso, por nascimento, aos meios de produção, é forçado a atender aos interesses do capital, em troca do prêmio de consolação do salário, que repõe sua força de trabalho, mas não paga todo o valor produzido em acréscimo. A isso, o liberalismo, ideologia do capital, chama cinicamente de trabalho livre. Um trabalho “livre” que degrada a humanidade do ser humano, negando-lhe a própria liberdade.
Simples assim. O estranho não é o ser simples, o espantoso é essa enorme simplicidade ser encoberta tão inexoravelmente pela ideologia liberal.
Vitor Henrique Paro, 06/02/2020
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3 Comentários
Adorei essa explicação de “trabalho livre”. Vou citá-lo na minha tese de doutorado.
Belíssimo texto! Segundo parágrafo é poesia da melhor qualidade.
Que bom que você gostou, Estela. Obrigado pela generosa manifestação. Um abraço terno.