Como acontece com a maioria das verdades que incomodam ao capital, quem faz essa afirmação, ou é totalmente ignorante a respeito do funcionamento do capitalismo e, portanto, desconhece por completo a contribuição de Karl Marx a respeito do assunto, ou pretende simplesmente encobrir a verdade, para favorecer os grupos econômicos dominantes. Na maioria dos casos, as duas coisas se dão ao mesmo tempo, porque o capital gosta de manter os intelectuais postos a seu serviço na ignorância das verdadeiras leis da Economia Política. Prova disso é o obscurantismo a respeito de Marx especialmente nos currículos dos cursos de Economia e de Administração, que são os mais explicitamente articulados aos interesses empresariais. É fácil disseminar e manter essa crença, porque, para perceber que não é bem assim [Neba], é preciso pensar criticamente e (para ficar no tema) ter um pouco de capacidade de abstração, predicados com os quais os economistas “liberais” parecem não estar muito familiarizados.
Mas não é difícil provar a falsidade da afirmação, embora tenha que se refletir, pelo menos um pouquinho. O conteúdo deste pitaco deve complementar (e aprofundar), em certa medida, o que tratamos no pitaco a respeito do trabalho como fonte de valor econômico. Ali, apresentamos os conceitos de valor de uso, valor de troca e valor, e demonstramos que a única coisa que cria verdadeiramente este último é o trabalho humano. Em nossa investigação, tínhamos chegado à conclusão de que o verdadeiro responsável pela formação do valor deveria atender a dois requisitos: a) ser comum a todas as mercadorias e b) ser “igual”, homogêneo, em todas elas. Encerramos nossa conversa quando concluímos que o único componente comum a todas as mercadorias era o trabalho. Falta agora examinar em que medida esse trabalho é de fato homogêneo a ponto de poder equivaler-se na troca de mercadorias portadoras de valores de uso diversos.
Para isso é preciso começar por contemplar dois novos conceitos: trabalho concreto e trabalho abstrato. Numa primeira aproximação, podemos dizer que se trata absolutamente do mesmo fenômeno, abordados sob dois pontos de vista distintos. No caso do trabalho concreto, partimos do conceito geral (“atividade orientada a um fim”) e levamos em conta o trabalho em sua função de produzir valores de uso. E o fazemos tendo presente sua “concretude”: na produção de uma mesa, por exemplo, consideramos as atividades concretas de escolher a madeira, medir, serrar, encaixar, envernizar, etc. e temos como produto o valor de uso mesa, própria para ser utilizada no escritório ou na sala de jantar. Este é o trabalho concreto. Ao contemplá-lo, não fazemos abstração de nada, consideramo-lo em sua realização prática, quer dizer, concreta. Daí seu nome: trabalho concreto. Essa percepção está ao alcance de qualquer senso comum, até mesmo dos economistas “liberais”.
Pois bem, considerado o trabalho sob esse ponto de vista, como trabalho concreto, não é possível com ele preencher o requisito de algo comum a todas as mercadorias e que seja ao mesmo tempo “igual”. O trabalho que produz valor não é, portanto, o trabalho enquanto trabalho concreto. Embora este esteja presente em toda mercadoria, ele é diferente em cada uma delas. Desse ponto de vista, se considerarmos, por exemplo, a troca de 1 mesa por 4 garrafas de vinho, não podemos dizer que o valor que há na mesa e no vinho deriva do fato de terem trabalho concreto incorporado, pois o trabalho (concreto) de produzir mesas não é “igual” ao trabalho (concreto) de produzir vinho.
Como o senso comum não consegue ver o trabalho a não ser sob esse ponto de vista do trabalho concreto, sempre foi muito difícil aceitar o fato de que, sendo o trabalho humano o único elemento comum a todas as mercadorias, o valor econômico só pode ser derivado do trabalho. Em termos históricos, foi preciso a genialidade de Karl Marx para resolver o problema com o conceito de trabalho abstrato. Vamos a ele.
Tomemos, pois, aquele mesmo exemplo, e pensemos, agora, o trabalho de produzir mesas, abstraindo (quer dizer, suspendendo o juízo, pondo entre parêntesis) suas atividades concretas específicas de medir, serrar, lixar, etc. Verificaremos que, ao mesmo tempo em que o trabalhador realiza essas atividades (que resolvemos abstrair), ele despende energia humana física e mental. É esse trabalho enquanto dispêndio de energia humana que, além de ser comum à produção de toda mercadoria, é também “igual” em todas elas. Seja fazendo uma mesa, seja produzindo vinho, seja construindo um avião, onde houver um trabalhador exercendo atividades diferenciadas, haverá algo comum que é responsável pela “igualação” das mercadorias, na troca.
É esse ponto de vista que leva ao encontro do chamado trabalho abstrato. Mas, calma! Ainda não temos o conceito pleno de trabalho abstrato. Ele não tem apenas essa característica “fisiológica” de dispêndio de energia humana. Ele não se reduz a isso, embora (não nos esqueçamos) ele seja também isso.
Como vimos em outro pitaco, a energia humana despendida no processo de trabalho chama-se força de trabalho. Agora é que vem o mais importante: a força de trabalho no modo de produção capitalista apresenta-se como mercadoria, comprada (pelo capitalista) e vendida (pelo trabalhador). Sabemos que, numa sociedade mercantil, como os bens e serviços necessários à vida dos indivíduos são produzidos privadamente, cada agente produtivo abre mão do bem ou serviço que produz em favor dos bens e serviços produzidos pelos demais agentes produtivos. Isso se dá pela troca de mercadorias. A mercadoria é, portanto, o veículo da socialização dos produtos necessários à produção da vida material na sociedade. Assim, a força de trabalho enquanto mercadoria, para além de sua característica fisiológica, se apresenta como uma categoria essencialmente sociológica.
A rigor, não é tão surpreendente que seja a força de trabalho a determinar o valor das mercadorias e a dar essa conotação francamente sociológica ao conceito de trabalho abstrato. Afinal, a força de trabalho consiste na própria vida do indivíduo que trabalha. É para suprir suas potencialidades vitais que ele desenvolve suas atividades. O homem trabalha para viver (embora os sistemas injustos como o capitalismo o façam viver para trabalhar). Só que ele não consegue produzir diretamente toda sua existência material. Como ser social, ele precisa participar da divisão social do trabalho, cedendo parte do que produz e tendo acesso à produção dos outros produtores.
Para todos os efeitos, podemos agora afirmar com maior precisão que não é simplesmente o trabalho, mas o trabalho abstrato o responsável pela produção do valor na sociedade capitalista. As dificuldades não se encerram aqui. Falta considerar, finalmente, a magnitude do valor, que certamente deverá ser aferida pelo tempo de trabalho aplicado na produção. Este, entretanto, é assunto de outro pitaco.
Vitor Henrique Paro, 24/01/2020
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