#34 Escola Pública: acesso à cultura, combate ao obscurantismo e luta contra a opressão.

Discurso pronunciado em 10/05/2023, por ocasião da cerimônia de outorga do título de
Professor Emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo

Nem preciso dizer quanto me honra ser distinguido com o título de Professor Emérito da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, pois essa distinção é evidentemente engrandecedora para qualquer pessoa que a receba. Mas devo, sim, expressar o orgulho imenso que sinto ao receber essa homenagem da instituição que é minha casa acadêmica há 53 anos. Desde 1970, quando aqui iniciei como estudante de Pedagogia, continuando depois minha atuação como docente, e seguindo com minha passagem pelos vários degraus da carreira até o cargo de Professor Titular (hoje na condição de Colaborador Sênior), tenho convivido com um sem número de pessoas especialíssimas. Primeiro, meus mestres e os colegas estudantes, depois os colegas e as colegas de docência, os funcionários, funcionárias, alunos e alunas. É impossível nominá-los todos. Por isso, o agradecimento que faço agora aos atuais membros da Congregação, que resolveram unanimemente conceder-me esse honroso título, encerra minha gratidão, meu reconhecimento e meu amor a todos aqueles e aquelas que, durante esse período e no decorrer desse percurso, me fizeram tanto bem, foram tão bons para mim e com os quais, portanto, tenho o prazer de compartilhar esta homenagem. Muito obrigado.

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Do que aprendi estudando e do que difundi ensinando, aproveito este ensejo extraordinário para comentar brevemente três lições que me parecem dignas de serem ensinadas a todos os educadores e educadoras de hoje.

A PRIMEIRA LIÇÃO diz respeito à necessidade da adoção de uma nova ética social, de caráter universalista e com lastro científico, que prevaleça como referência básica e razão de ser de toda prática educativa. Educar pressupõe o compromisso com o bem comum, em especial com o desenvolvimento saudável e livre do educando. Bem comum significa bem de todos. Mas esse “todos” como objeto do bem que se deve realizar socialmente jamais foi levado em conta com a devida radicalidade pelos que monopolizam o poder e por aqueles que aceitam passivamente a ordem social vigente.

A ética, como domínio dos valores, é condicionada historicamente. Como resultado da não indiferença do homem diante do mundo (Ortega y Gasset), a ética se evidencia toda vez que o ser humano, como ser genérico, se manifesta diante daquilo que o rodeia, consistindo, já, tal manifestação, na criação de um valor. A partir dos valores, o ser humano estabelece objetivos, que busca realizar pelo trabalho, transformando a Natureza. É, assim, pois, pela aplicação de sua vontade, que o homem se destaca da necessidade natural, ao transformar o mundo e fazer-se humano-histórico. Com isso, se faz sujeito, guiado por sua vontade, na transcendência da Natureza. Retenhamos esse conceito de sujeito, que sintetiza a especificidade do homem como ser histórico. Sempre que nos referimos ao bem comum, à realização pessoal e à felicidade de cada um, é sua realização como sujeito que deve estar presente em primeiro lugar.

Mas, voltemos ao nascimento dos valores. Quando se manifesta diante do real, fundando a ética, o homem o faz com base no conhecimento que tem desse real. Uma ética adequada à boa convivência social de hoje, portanto, certamente será diversa de uma ética forjada na Idade do Ferro, por exemplo, em que o deus dos hebreus mandava passar ao fio da espada as crianças e as mulheres dos inimigos e conservar os varões para fazê-los escravos. Certamente que o poder político (autoritário e machista) estava presente na inspiração dessa ética, mas o verdadeiramente espantoso é que esse deus prevalece até hoje, fundamentando a visão judaico-cristã que prepondera em nossa sociedade em pleno século XXI. É por isso que propugnamos por uma ética com lastro científico. É preciso, pois, aposentar essa velha ética, baseada na fé, na crença, no mito, na aparência, na ignorância, no medo. O bem que se faz ao outro não pode ter como motivo a salvação da alma de quem o faz ou a obediência a dogmas provindos de profetas e demiurgos.

Em sentido radicalmente oposto a essa visão de mundo, o que minha prática pedagógica e política tem me convencido é que, para fazer frente aos múltiplos problemas de relacionamento social no mundo atual, é preciso ter conhecimento o mais próximo possível de como se produz a vida material e como tal produção está intrincada com a disposição do poder político vigente. A nova ética deve basear-se em conhecimento objetivo da realidade, buscando as formas de que se dispõe para produzir o bem para todos.

Há mais de 150 anos, desde a publicação de O capital, por Karl Marx, o mundo dispõe de uma teoria que dá conta cientificamente da produção material da existência humana, elucidando as leis que regem a divisão social do trabalho e o exercício da dominação por aqueles que monopolizam as condições objetivas dessa produção. Não obstante o pavor que essa teoria causa aos donos do poder e responsáveis pelas injustiças sociais, que buscam (e têm conseguido) de todas as formas silenciá-la, de modo análogo ao que a Igreja Católica e os poderosos de ontem fizeram para silenciar durante séculos a teoria copernicana do movimento da Terra, ouso pinçar apenas um elemento dessa teoria para iluminar a necessidade de uma nova ética que supere o etos prevalecente.

Como escrevi em meu livro recente O Capital’ para Educadores, a divisão social do trabalho diz respeito à participação de cada indivíduo, por meio de seu trabalho, na produção da vida material dos demais. Essa divisão é decorrente da natureza necessariamente social do homem: embora ele mesmo produza sua existência material, apenas uma pequeníssima parte ele o faz diretamente, tendo de contar com o trabalho de outros para produzi-la em sua completude. É, pois, da conjugação do esforço laboral de bilhões e bilhões de indivíduos espalhados no tempo e no espaço que cada um de nós depende para compor nossa própria vida material. Pode-se dizer que não é o homem que trabalha, é a humanidade que o faz por intermédio de cada um de seus componentes individuais. Não apenas dependemos uns dos outros, mas fazemos parte de um corpo unitário chamado humanidade. Daí decorre a questão ético-política fundamental que estou procurando tratar aqui: o contributo que recebemos de toda a humanidade nos faz corresponsáveis por seu destino. Em termos civilizatórios (portanto históricos), o lado moralmente defensável não é, então, o daquele que se preocupa apenas com o próximo (até porque dependemos infinitamente mais de nosso distante) nem o que apenas usa de empatia para colocar-se no lugar do outro, mas aquele que, consciente de seu lugar na humanidade (de sua responsabilidade social), coloca o outro e a si mesmo a serviço da humanidade, sofrendo quando qualquer de seus membros sofre, indignando-se quando qualquer de seus membros é ofendido, regozijando-se com a felicidade dos outros e responsabilizando-se pelo bem comum da humanidade. Em linguagem comum, o amor ao outro deve ser visto como pressuposto e consequência do amor a todos os outros.

Deem a essa ética o nome que quiserem. Eu prefiro chamá-la comunismo. O comunismo, embora certamente suponha a consideração do econômico, nele não se detém, pois a razão de ser do próprio econômico deve ser sempre a felicidade integral da sociedade, o bem comum. Esta é a lição que gostaria de ver ensinada aos educadores. Que todo educador, toda educadora, se encharque de convicção e responsabilidade na construção da universalidade do humano-histórico. Para citar Hannah Arendt, “Qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação.”

Que bom se todos nós educadores saíssemos do armário e disséssemos de cabeça erguida “comunista, sim, com toda honra”. Para fazer frente a esse obscurantismo disseminado na população em geral, e pensar em construir uma sociedade melhor, preocupados com o comum, com o público, com a escola pública, com o saber público, preocupados com a apropriação da cultura, de modo a construir um mundo melhor, de pessoas iguais. Iguais em possiblidades de vida, de acesso a sua própria possibilidade de produzir a vida. Iguais no sentido do bem comum.

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A SEGUNDA LIÇÃO refere-se à mais conspícua constatação de todas as ciências e disciplinas que subsidiam a teoria e a prática pedagógicas. Resume-se na seguinte afirmação: o educando só aprende se quiser. Simples assim. Trata-se do fato científico mais óbvio e, ao mesmo tempo, o mais ignorado pelo amadorismo pedagógico que campeia em nossas políticas educacionais e na prática pseudopedagógica de nossas escolas.

Quantas vezes não vemos ou ouvimos professores, pais e mães, políticos, empresários, formuladores de políticas públicas, a população em geral, a mídia, e até mesmo acadêmicos que se dizem conhecedores de pedagogia, tentar justificar o insucesso dessa ou daquela medida ou situação educativa, alegando que, não obstante a qualidade do ensino apresentado, a culpa do fracasso foi do educando, que não aprendeu “porque não quis aprender”? O absurdo dessa argumentação consiste em ignorar que o papel primordial de quem educa é precisamente levar o educando a querer aprender, visto que esta é condição sine qua non para que ele de fato aprenda. Se isso não acontece, não pode haver ensino, porque não houve aprendizado. Como, pois, dizer que o trabalho de ensino teve boa qualidade? Como falar de qualidade de algo que não existiu?

O educando só aprende se quiser porque educar-se é fazer-se humano-histórico e a característica distintiva do humano-histórico, como vimos há pouco, é precisamente fazer-se sujeito, ou seja, realizador de sua vontade. A ultrapassada educação “bancária” (Freire), prevalecente em nosso sistema de ensino, ignora isso, tomando a educação como mera passagem de conhecimentos e informações. A visão que adotamos, ao contrário, assume o conceito de educação como a apropriação da cultura, entendida em seu sentido amplo, como tudo aquilo que o homem produz historicamente em contraposição à necessidade natural, ou seja, valores, conhecimentos, informações, crenças, ciência, filosofia, arte, tecnologia, direito, costumes, tudo enfim que o caracteriza como humano-histórico. E essa apropriação não se dá pela transmissão de um sujeito (educador) para um objeto (educando), mas pela apropriação autônoma de um sujeito (educando) a partir das condições oferecidas por outro sujeito (educador).

Essa maneira de ver atribui, certamente, características inteiramente singulares ao trabalho educativo, de tal modo que o educador, ou o professor, não realiza apenas uma ação que resulta num produto. Seu fazer, em vez disso, deve produzir outro fazer, o do educando, que realiza a atividade que dá origem ao produto desejado, isto é, sua personalidade viva modificada pela cultura por ele incorporada. Isso envolve duas importantíssimas questões, uma técnica e uma política.

Tecnicamente, há a necessidade profissional da posse de conhecimentos científicos e tecnológicos por parte de quem educa. Se a realização do aprendizado depende da decisão do educando, uma das providências essenciais de um ensino verdadeiramente profissional é proporcionar condições para que isso aconteça. Nesse sentido, a profissão docente exige não apenas a familiaridade com o conteúdo cultural que se pretende proporcionar, mas também a posse da capacitação requerida para ensinar de forma pedagogicamente adequada. Para isso, como acontece em qualquer processo de trabalho, é preciso que se conheça o objeto de trabalho com que se vai lidar. Acontece que o objeto de trabalho é o próprio educando, que não é mero objeto, mas necessariamente sujeito (humano-histórico). Conhecer o objeto de trabalho, portanto, implica dedicar-se ao estudo do próprio ser humano. É ver – tanto quanto possibilita o avanço científico – como se dá, do nascimento à maturidade, seu desenvolvimento biológico e psíquico, e, em seu contato com os demais seres humanos, seu desenvolvimento ético e social. Daí a enorme importância da formação docente num curso de Pedagogia, levando os futuros educadores e educadoras a se familiarizarem com as contribuições teóricas das diversas ciências e disciplinas que servem de fundamento à ação educativa, em especial a Psicologia, a Didática, a Sociologia, a História da Educação, a Filosofia, a Economia Política, a Antropologia. Trata-se de saber como e em que condições o homem não só aprende, mas também se dispõe autonomamente a aprender.

Essas considerações levam à questão propriamente política no processo de ensinar e aprender. A política, em termos rigorosos, envolve sempre o exercício do poder, ou melhor, do poder social, que é a capacidade de levar o outro a agir de acordo com a nossa vontade. Pois é precisamente essa relação de poder que se verifica sempre que o educador consegue levar o aluno a querer aprender. Acontece que a ação política pode ser de duas naturezas: autoritária – quando um sujeito nega a subjetividade do outro, dominando-o, pela imposição de sua vontade – ou democrática – quando a relação entre os sujeitos se dá por meio do diálogo, de modo que ambas as subjetividades resultem reforçadas. O autoritarismo certamente está fora de qualquer cogitação numa relação educativa. É pela relação dialógica, própria da democracia, que o educando pode apropriar-se autonomamente da cultura. Portanto, mais do que uma relação política, a relação pedagógica é, necessariamente, uma relação democrática.

Observe-se que a caracterização técnica do processo de trabalho que acabamos de fazer tem a peculiaridade de ser perpassada pelo político, ou seja, a atitude do professor em relação ao seu labor não pode sustentar-se na exterioridade própria ao típico trabalhador da produção capitalista. Para este, o paradigma é o trabalho forçado, movido por um motivo (o salário) que é exterior à utilidade concreta do produto que ele realiza. Seu objeto de trabalho é uma coisa (mero objeto) que não tem uma vontade para lhe interpor. Por isso, sua eficiência pode reduzir-se ao propriamente técnico. No caso do docente, seu trabalho precisa ser livre, pois o motivo que determina sua ação é a real efetivação do produto resultante, e até seu compromisso com ele. Seu objeto de trabalho é o ser humano (um sujeito) cuja vontade deve ser levada em conta. Essa vontade do educando deve perpassar a atividade educativa, em “diálogo” com a vontade de quem educa. Por conseguinte, a capacidade técnica do educador deve estar associada, ou melhor, já deve conter, o seu comprometimento político.

Como toda ação democrática, a ação docente é uma ação de risco. Como o objeto de trabalho é um sujeito, o educador tem de lidar com o risco de que esse sujeito – que, ao fim e ao cabo, deve constituir-se em seu parceiro de trabalho – não se disponha a participar do aprendizado. Se o educador não se envolve com o trabalho, não se “cumplicia” com o aluno, não há aprendizado. Isso exige conhecimento técnico e comprometimento político. É para formar esse educador que contamos com escolas superiores com a dignidade da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

* * *

A TERCEIRA LIÇÃO tem como mote a importância de se questionar o conto do vigário que é milenarmente passado às nossas crianças. Essa expressão, utilizada por Berger e Luckmann, para identificar o engodo aplicado pela sociedade à criança durante sua socialização primária, serve bem para identificar o que temos feito com nossos jovens, não apenas em seus primeiros anos de vida, mas desde o nascimento até por volta do final do ensino fundamental, período que comporta o essencial do desenvolvimento biológico, psíquico e social do ser humano. Tal fenômeno consiste em imputar, às novas gerações, versões sobre a realidade, valores, costumes e concepções de mundo, fazendo-as crer que são naturais e universais, e não produtos da história e variáveis de acordo com a cultura ou sociedade em que estão inseridos.

O caráter nocivo desse conto do vigário para a formação da personalidade humana e para a constituição de uma almejada felicidade social é facilmente aquilatável quando se atina para o absurdo que é, à luz de uma concepção de mundo pautada na ciência e em valores democráticos, a imputação de informações falsas e valores historicamente ultrapassados numa idade em que o ser humano não tem a menor condição, sequer biológica, de avaliar criticamente essas informações. É isso que acontece quando, a pretexto de “educar” a criança para o bem, logo nos primeiros anos de vida, se lhe impinge, usando a autoridade de pai, de mãe, ou simplesmente de adulto, conteúdos lastreados apenas na fé cega, sem nenhuma correspondência com o real. O mais dramático em termos da desejável luta por uma educação libertadora é que essas falsidades e esses valores antivida (digamos assim, parafraseando Neil), assimilados na mais tenra idade sem o contraponto da reflexão, impregnam-se de tal forma na personalidade de cada um, que se torna quase impossível demovê-los depois, no decorrer da vida, em favor de concepções racionais e de posturas científicas a respeito das coisas e das gentes.

Não é isso mesmo que acontece com a quase unanimidade das crianças nessa nossa sociedade tradicionalmente cristã? Um deus poderoso, autoritário e egocêntrico, saído do nada, mas que vigia teus passos a cada instante, impondo regras e deveres que, se não cumpridos, trarão sobre ti a fúria do inferno… Já nasces culpado e deves obedecer sempre não apenas a esse deus mas a qualquer autoridade que se ponha mais forte que tu.

Não se trata, porém, de sonegar à criança o mundo da imaginação, do fantástico, dos contos de fadas, das lendas. Mas, por que se inventa o Papai Noel de forma provisória – que depois, com o passar do tempo, é desmentido, à medida que a criança pode ir tendo uma noção mais autônoma do mundo –, enquanto que o deus monocrático e autoritário, com o mesmíssimo estatuto de verdade (ou de mito) que o Papai Noel, é posto para sempre, sem que a criança nunca tenha condições de contestar, sob o risco de estar cometendo um pecado?

Aos olhos da ciência e da ética que reivindicamos, é criminoso imputar um deus (e que deus!) a uma criatura que ainda não tem condições sequer naturais de discernir o verdadeiro do falso, marcando sua personalidade para o resto de sua vida com uma mentira que a escraviza.

Não se trata, em absoluto, de intolerância religiosa. A fé religiosa é um direito inalienável nas democracias. Devemos tolerar a fé religiosa, por mais que a consideremos estúpida, mas não podemos tolerar a ignorância, o obscurantismo e a opressão, que costumam ser seu fundamento e resultado. É esse obscurantismo pernicioso que se sobressai e impera sobre o caráter das pessoas, quando se lhes negamos o acesso à cultura pela única via possível que é o processo educativo.

Se não lhes proporcionamos, por meio da ciência, o domínio do conhecimento objetivo da realidade, será impossível o desenvolvimento de uma consciência crítica do real. É à medida que apreende as múltiplas determinações do real, que o educando vai formando para si uma visão mais objetiva do mundo natural bem como da realidade social e das maneiras de abordá‑los e modificá‑los em benefício do próprio homem, afastando, assim, as concepções mágicas e mistificadas do mundo.

Se não for assim, a mesma irreflexão que aceita um deus poderoso e fatalista, favorece a aceitação das ordens do patrão e a opressão do capital. A mesma complacência com um destino ou com vidas terrenas manipuladas por forças do além dificulta o questionamento social e a luta material (não por meio de orações) por uma sociedade menos cruel para com os desfavorecidos. O custo de sentir-me (hipocritamente) pesaroso pela culpa de um Jesus na cruz é isentar-me de ver-me responsável por milhões e milhões de miseráveis que mal sobrevivem para que eu e mais uns poucos possamos viver bem. Essa mesma ignorância leva também a respeitar a perversa meritocracia e a aderir ao estúpido empreendedorismo. A mesma prática calcada em dogmas e juízos perenes impede de conviver com o diverso e a pugnar pelo fim de preconceitos sociais milenares, relativos a raça, etnia, gênero, confissão religiosa, condição física, origem social, adesão política, etc., etc.

Ressalte-se que não se trata de recriminar nenhuma igreja em particular, mas todas as crenças sem fundamento na realidade que, saindo do domínio privado, são utilizadas pelos espertos e poderosos para pautar comportamentos de apatia, de submissão ou de prepotência, contra a ciência e o bem comum. Tanto as crenças emanadas das religiões oficiais quanto aquelas espertamente constituídas pelos poderosos, na forma da ideologia econômica dominante, laboram de forma extremamente deletéria contra qualquer sonho possível de uma sociedade melhor, em que imperem o bem comum e a ciência, não a opressão e o obscurantismo.

Não é pequena, pois, a tarefa da escola pública, que, além de sua função característica de proporcionar a seus frequentadores o acesso à verdade e à ciência, tem de estar preparada para combater as crenças infundadas, impingidas às nossas crianças desde o berço, por quem tem o poder de fazê-lo. E, se pretendemos formar professores aptos a neutralizar em seus alunos os efeitos desse conto do vigário, é preciso que as instituições formadoras de educadores, como é o caso desta Faculdade de Educação da USP, tenham bastante presente que as pessoas que aí chegam para estudar já foram, elas mesmas, vítimas desse conto.

* * *

Espero que essas três lições possam servir em alguma medida para realçar a importância primordial da escola em sua tripla função pública: proporcionar o acesso à cultura, ao mesmo tempo em que neutraliza o obscurantismo e instrumentaliza a luta contra a opressão. Isso não é matéria para amadores. É preciso contar com profissionais de alta capacidade técnica e verdadeiro compromisso político. Daí deriva a alta relevância de instituições formadoras de educadores escolares do nível desta Faculdade de Educação, à qual tenho o orgulho de pertencer. Por isso, termino essa fala congratulando-me com todos os colegas professores que, nesta escola, não poupam esforços para trabalhar criticamente na tarefa de formar educadores que se pautem, de uma forma ou de outra, pelos valores que inspiraram essas três lições.

Que se supere a tradicional ética egocêntrica e individualista em favor da instauração de uma nova ética universalista, cumpliciada com o autêntico comunismo, ou seja, aquela visão de mundo comprometida com a realização espiritual e material do bem comum. Além disso, que o reconhecimento da educação como ação política – que supõe a relação democrática entre sujeitos humano-históricos e a luta pela extinção da dominação – esteja presente na reflexão e na prática de todos os educadores. E que o combate ao obscurantismo seja incessantemente praticado em favor do desvelamento da realidade pelo uso da razão e da ciência, com a competência pedagógica necessária para mudar personalidades forjadas na mistificação e na mentira desde o nascimento.

Referências

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. Petrópolis: Vozes, 1973.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1983. v. 1, t. I e II.

NEILL, Alexander Sutherland. 16. ed. Liberdade sem medo: Summerhill: radical transformação na teoria e na prática da educação. São Paulo: Ibrasa, 1976.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.

PARO, Vitor Henrique. O Capital para educadores ou aprender e ensinar com gosto a teoria científica do valor. São Paulo: Expressão Popular, 2022.

Vitor Henrique Paro, 25 de fevereiro de 2023.

Se notar alguma ideia ou tema que você considere mal abordado ou que exija maior explicação, me comunique, por favor. Terei prazer em considerar sua observação.

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COMENTÁRIOS

1 Comentários

  1. Mariana Saliola

    excelente

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