#20 Por que voto obrigatório numa democracia?

Quando me fazem esta pergunta, costumo responder com outra: Por que não? A torrente de disparates, insensatezes, incoerências e demonstrações de ignorância que costumo ouvir, é de arrepiar meus parcos cabelos brancos. Mesmo pessoas que reputo muito cultas e inteligentes costumam apresentar argumentos totalmente infundados sobre a necessidade de que o voto seja facultativo para que se possa considerar uma república como democrática e, para piorar a situação, apresentam como exemplo os Estados Unidos – uma nação que sequer eleição direta para Presidente da República tem – como exemplo de democracia (sic) em que o voto é facultativo.

Um dos argumentos mais recorrentes é o que afirma que, se é democracia, o voto não pode ser forçado. Bem, depende do que você entende por “forçado”. A propósito, não deixa de ser irônico (para não dizer patético) o fato de a maioria dos que reclamam pelo esforço de gastar alguns segundos para acionar a urna eletrônica, uma ou duas vezes a cada dois anos, para cumprir um dever universalmente reconhecido, é de pessoas que passam anos e anos empregando sua força de trabalho para o capital, num trabalho que, este sim, é forçado, sem terem a mínima consciência disso.

Mas, se você está querendo dizer que o voto não pode ser um dever, já que é um direito democrático, saiba que há aí um grande engano. A democracia não está ligada apenas a direitos, ela não é uma entidade que nos oferece direitos como se fossem privilégios. O Estado democrático está organizado em direitos e deveres. Aliás, não há direito que não tenha a contrapartida do dever. Ao direito que tenho de avançar no cruzamento, quando o semáforo está no verde, corresponde meu dever de parar, quando ele está no vermelho. Mais ainda: não tenho apenas o direito mas também o dever de avançar no verde, porque se fico parado atrapalho o direito dos que estão atrás de mim e querem avançar. Simples assim.

No contexto da filosofia política, o conceito de direito transita necessariamente no domínio do público. Não diz respeito, portanto, a características particulares, privadas, mas à universalidade de sua aplicação. O fundamento de um direito é o fato de que ele é comum, de todos, implicando sempre a correspondência de deveres. Por mais estranho que possa parecer (especialmente para quem sempre dominou ou para quem sempre foi dominado), ao direito de ser governado corresponde o dever de governar, ou pelo menos de auxiliar no governo, escolhendo seus representantes. Por isso, votar não é um direito que alguém lhe concede, em atenção a qualquer atributo pessoal seu. Isso seria privilégio, que transita no domínio do privado.

A ideia de uma incoerência entre a democracia e a obrigatoriedade do voto parece bastante disseminada na população em geral, talvez com maior incidência entre os menos escolarizados, mas atinge também pessoas com maior acesso à cultura letrada. Trata-se de um grande equívoco, advindo em boa medida da falta de informação histórica a respeito da luta milenar da humanidade em favor de uma sociedade mais justa e mais adequadamente governada.

A democracia moderna só pode subsistir sob a ideia da universalidade de direitos e de deveres. É para se opor a governos monocráticos ou oligárquicos – em que um ou poucos têm o poder do Estado – que se impõe a solução de soberania popular. Ou seja, o suposto básico é que todos possam vir a assumir o poder. Para isso é imperioso o direito de todos de votarem e serem votados. Mas, se ser votado é um simples direito – à disposição de quem decide pleitear uma candidatura –, votar tem necessariamente de ser também um dever. Ou seja, você não tem, obrigatoriamente, de exercer em termos profissionais uma função no governo da sociedade, mas isso não o isenta de contribuir, pelo menos com um mínimo estabelecido constitucionalmente (assumir a responsabilidade de escolher os representantes do povo), para que o governo se viabilize. Ao benefício que recebo desta sociedade que me oferece a própria possibilidade de viver, preciso retribuir, mesmo minimamente (por meio do voto), com minha ação em seu governo.

Se o voto é condição sine qua non da democracia, ele não pode ser deixado ao arbítrio apenas de quem queira exercê-lo. Que raios de democracia é essa em que o cidadão não tem sequer o dever de cooperar com seus iguais na organização e no governo da sociedade? Que compromisso constitucional frouxo é esse que não prevê sequer o dever de os indivíduos que o constituem colaborarem com seus iguais na busca de uma sociedade melhor para todos? (Atenção, “vira-latas”: os Estados Unidos não são nenhum exemplo de democracia.)

Em termos culturais, a eleição e o exercício do voto têm um especial valor pedagógico, pois mesmo aqueles que têm ojeriza ou não gostam de pensar muito em política – o que é de se lamentar – acabam se envolvendo e conhecendo um pouco mais sobre os assuntos públicos. É isso que incomoda a direita, articulada com o capital, que, por meio da grande mídia, se esbalda em ridicularizar e criminalizar a política, para que só os poderosos continuem a utilizá-la em seu benefício. Sem contar alguns que se dizem de esquerda, mas acabam formando na turma daqueles que, com pretensões a defensores do anarquismo, vomitam clichês e frases feitas sobre o direito de se rebelar contra tudo o que é estatal, defendendo a liberdade de não gostar de política e de não ter de votar, ou seja, a “liberdade” (na verdade, a licença) de não exercer a liberdade – nem contribuir para que os outros a exerçam.

Vitor Henrique Paro, 26/02/2020

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