Tomarei os termos gestão e administração como sinônimos, por não ver qualquer utilidade em diferenciá-los. Como já me referi em outros trabalhos, administração (ou gestão), em seu sentido mais sintético e abstrato, é a utilização racional de recursos para a realização de fins determinados.
Esse conceito geral serve para afastar dois vícios presentes no senso comum e também em estudos acadêmicos de administração de empresas. O primeiro vício é o que associa toda gestão à relação de mando e submissão. Assim, numa sociedade que ainda se funda na dominação, parece não ser possível pensar em administração senão em termos de alguém que administra e alguém que é administrado, como se os seres humanos ainda não tivessem se despregado do âmbito da necessidade natural, de modo a serem capazes de se autoadministrarem ou a realizarem uma gestão em que vigore a colaboração entre as pessoas, não a dominação de umas sobre as outras.
Para a elite proprietária dos meios de produção, como acontece no capitalismo, não há nenhum interesse em adotar formas de gestão que incluam uma verdadeira colaboração com os explorados. Estes, como já vimos, para ter acesso aos meios de produção (condições objetivas de vida), mesmo sendo eles a única fonte de toda a riqueza produzida, precisam aceitar a imposição do capital, que lhes “devolve”, na forma do salário, apenas uma diminuta parte do valor por eles criado, enquanto o restante é apropriado pelo capitalista, cujo único “trabalho” é administrar o emprego do capital e da força de trabalho. Por isso, tanto na prática empresarial quanto na formação dos administradores de empresa, sequer se vislumbra um conceito amplo de administração que inclua a possibilidade da colaboração recíproca, porque esta negaria a dominação implícita na relação entre capital e trabalho. A chamada teoria geral de administração, nada mais é, pois, do que a teoria capitalista de administração. A coordenação do esforço humano coletivo, um dos processos essenciais da atividade gestora, se dá na forma específica de gerência, isto é, pelo controle do trabalho alheio que, como vimos, é trabalho forçado.
O segundo vício é reduzir o fato administrativo apenas às chamadas atividades-meio, ou seja, àquelas ações que antecedem, preparam ou dão suporte externo à realização das atividades-fim. Numa escola, por exemplo, costuma-se reconhecer como componente da administração, além dos recursos materiais e financeiros e das normas para o funcionamento do estabelecimento de ensino, apenas as ações preparatórias ou de assistência às atividades propriamente educativas, como as da diretoria, da secretaria, dos serviços auxiliares, etc.
Não há dúvida nenhuma quanto à importância dessas atividades e do acerto em chamá-las administrativas. O que não parece correto é excluir as atividades-fim do âmbito da administração. Se administração é mediação para realização de objetivos, não há nada mais administrativo, na escola, do que o processo educativo que se dá na situação de ensino, não se justificando, portanto, o costume de antepor as atividades pedagógicas às atividades administrativas. Não é incomum ouvir professores e pessoal da escola em geral, quando reclamam da direção ou de autoridades do sistema de ensino, dizer que a preocupação destes é apenas com o administrativo, esquecendo-se do pedagógico. Ora, se o que qualifica o administrativo é precisamente a busca de objetivos, e se o objetivo da escola é precisamente o pedagógico, cuidar do administrativo, aí, consiste necessariamente em cuidar do pedagógico. Portanto, reduzir o escopo da administração às atividades-meio é identificá-la à prática burocrática no sentido mais depreciativo deste termo, isto é, a uma prática que acaba por tornar-se fim em si mesma, perdendo precisamente aquilo que é essencial na gestão, seu caráter mediador. Por isso, uma ação na escola que não se preocupa com o pedagógico pode ser considerada burocrática, mas não administrativa.
A consideração desses dois equívocos enseja o delineamento de um conceito de gestão escolar que ultrapasse a nociva concepção da razão mercantil que tem contaminado tragicamente as políticas públicas educacionais. Antes de tudo, é preciso ficar claro que a escola enquanto empresa não é apenas diferente da empresa mercantil capitalista: elas têm objetivos antagônicos. Enquanto esta última está preocupada com o lucro, aquela se ocupa da formação do humano-histórico. O lucro do capitalismo é resultado da exploração do outro, por meio da expropriação do excedente de valor produzido pelo trabalhador; a formação do humano-histórico é fruto da educação, por meio da apropriação da cultura, numa relação entre sujeitos. No primeiro caso há dominação; no segundo, colaboração recíproca. E ambos os fenômenos se dão necessariamente: o lucro capitalista precisa da exploração (e da consequente relação de dominação); a formação humano-histórica precisa da educação (e da consequente relação de colaboração recíproca).
Por isso, não é com a aplicação na escola dos procedimentos administrativos que “dão certo” na empresa mercantil que se vai alcançar a racionalidade e a eficácia do empreendimento educacional. A consequência lógica do entendimento da administração como mediação para o alcance de fins é que são esses fins que determinam os meios a serem utilizados, não podendo os meios, sob qualquer pretexto, se colocarem em oposição aos objetivos.
Falar em gestão escolar, portanto, é acima de tudo falar em educação, o fim último da escola. Por isso, por mais que se cuide das atividades-meio, elas de nada servem se não estão a serviço da atividade-fim que é o ato educativo. Aqui, é preciso acima de tudo afastar o amadorismo pedagógico e assumir a singularidade do processo de ensino, fundamentando-o na ciência, na técnica e no envolvimento político de seus executores. Isso exige provimento de condições adequadas de trabalho (cuidado e dedicação aos educandos e oferecimento de condições de exercício profissional qualificado e digno aos educadores) e utilização de métodos didáticos avançados (pautados no desenvolvimento recente da Pedagogia). Exige também abolir os nefandos controles gerenciais e toda a parafernália gestionária mercantil, adotando uma coordenação do trabalho coletivo que se paute na colaboração recíproca. Ao mesmo tempo, é preciso uma atenção superlativa com a formação profissional do professor, não apenas no que diz respeito aos conteúdos culturais que irá ensinar, mas também a uma formação intelectual e moral condizente com valores humano-históricos de democracia, justiça e eliminação do obscurantismo e da desigualdade.
Vitor Henrique Paro, 09/06/2020
Se notar alguma ideia ou tema que você considere mal abordado ou que exija maior explicação, me comunique, por favor. Terei prazer em considerar sua observação.
Um texto alto nível que aborda profundamente a complexa gestão escolar… Então temos um povo que movimenta alienadamente a máquina capitalista nefasta, produto/produtores de uma pseudodemocracia expressa em todas os segmentos da sociedade e especificamente nas escolas. Somos nós os professores que pleiteamos os cargos para gestão escolar, mas será que estamos preparados? A realidade tem mostrado a esquiva quanto a autoformação. Como diz o francês Edgar Morin somente os educadores podem educar o próprio pensamento. Grosso modo temos um crescente o amadorismo pedagógico e uma atividade democrática cada vez mais remota nas instituições escolares.
Ótimo texto. Pelo que entendi a finalidade da gestão escolar democrática é a qualidade do ensino, a valorização da educação. Acredito que esse fim seja improvável na sociedade em que vivemos. Nosso sistema econômico e social capitalista não está interessado em investir na formação histórica-social do ser humano. Quer só que trabalhemos de maneira alienada. Então acredito que a gestão escolar democrática é algo que não poderia ser alcançado no atual contexto.
Ótimo texto para refletirmos o papel da gestão também como agente de articulação para o objetivo comum que é educação de qualidade para os educandos e um ambiente digno de trabalho para os trabalhadores da instituição, entretanto, como gestor, percebo uma certa dificuldade na implantação efetiva de uma gestão democrática da escola. A mim parece faltar um comprometimento em assumir responsabilidades para o objetivo comum mencionado anteriormente. O individual toma uma forma gigantesca diante do coletivo. Penso que para além de mecanismos de fortalecimento da gestão democrática como é o caso dos conselhos escolares, devemos ainda garantir uma formação continuada, de preferência em loco para que os desafios sejam colocados e papéis sejam bem definidos em busca de uma tomada de decisão. Tudo isso sem jamais esquecer do foco proncipal que deve ser um apredizado qualitativo e eficaz.
Obrigado por seu comentário, Alexandro. Você tem razão quando fala da falta de comprometimento. Trata-se da ausência da “responsabilidade coletiva pelo mundo”, anunciada por Hannah Arendt, e que precisa ser aprendida desde muito cedo, como menciono em meu pitaco sobre “Quebrar a máquina de fazer bolsomínions“. Um forte abraço.
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Um texto alto nível que aborda profundamente a complexa gestão escolar… Então temos um povo que movimenta alienadamente a máquina capitalista nefasta, produto/produtores de uma pseudodemocracia expressa em todas os segmentos da sociedade e especificamente nas escolas. Somos nós os professores que pleiteamos os cargos para gestão escolar, mas será que estamos preparados? A realidade tem mostrado a esquiva quanto a autoformação. Como diz o francês Edgar Morin somente os educadores podem educar o próprio pensamento. Grosso modo temos um crescente o amadorismo pedagógico e uma atividade democrática cada vez mais remota nas instituições escolares.
Ótimo texto. Pelo que entendi a finalidade da gestão escolar democrática é a qualidade do ensino, a valorização da educação. Acredito que esse fim seja improvável na sociedade em que vivemos. Nosso sistema econômico e social capitalista não está interessado em investir na formação histórica-social do ser humano. Quer só que trabalhemos de maneira alienada. Então acredito que a gestão escolar democrática é algo que não poderia ser alcançado no atual contexto.
Olá professor Vitor!
Ótimo texto para refletirmos o papel da gestão também como agente de articulação para o objetivo comum que é educação de qualidade para os educandos e um ambiente digno de trabalho para os trabalhadores da instituição, entretanto, como gestor, percebo uma certa dificuldade na implantação efetiva de uma gestão democrática da escola. A mim parece faltar um comprometimento em assumir responsabilidades para o objetivo comum mencionado anteriormente. O individual toma uma forma gigantesca diante do coletivo. Penso que para além de mecanismos de fortalecimento da gestão democrática como é o caso dos conselhos escolares, devemos ainda garantir uma formação continuada, de preferência em loco para que os desafios sejam colocados e papéis sejam bem definidos em busca de uma tomada de decisão. Tudo isso sem jamais esquecer do foco proncipal que deve ser um apredizado qualitativo e eficaz.
Ótimo texto! Obrigado por compartiljhar!
Obrigado por seu comentário, Alexandro. Você tem razão quando fala da falta de comprometimento. Trata-se da ausência da “responsabilidade coletiva pelo mundo”, anunciada por Hannah Arendt, e que precisa ser aprendida desde muito cedo, como menciono em meu pitaco sobre “Quebrar a máquina de fazer bolsomínions“. Um forte abraço.