#23 Supérfluo, viver bem, projeto de ser

Um pouquinho de Ortega y Gasset não faz mal para ninguém.

Viver, viver bem, supérfluo, técnica:

[…] O homem não tem empenho algum por estar no mundo. No que tem empenho é em estar bem. Somente isto lhe parece necessário e todo o resto é necessidade somente na medida em que faça possível o bem-estar. Portanto, para o homem somente é necessário o objetivamente supérfluo. Isto se julgará paradoxal, mas é a pura verdade. As necessidades biologicamente objetivas não são, por si, necessidades para ele. Quando se encontra preso a elas se nega a satisfazê-las e prefere sucumbir. Somente se convertem em necessidades quando aparecem como condições do ‘estar no mundo’, que por sua vez somente é necessário em forma subjetiva; a saber, porque faz possível o ‘bem-estar no mundo’ e a superfluidade. De onde resulta que até o que é objetivamente necessário somente o é para o homem quando é referido à superfluidade. Não tem dúvida: o homem é um animal para o qual somente o supérfluo é necessário. Aparentemente parecerá aos senhores isto um pouco estranho e sem mais valor que o de uma frase, mas se os senhores reconsideram a questão verão como por si mesmos, inevitavelmente, chegam a ela. E isto é essencial para entender a técnica. A técnica é a produção do supérfluo: hoje e na época paleolítica. É, certamente, o meio para satisfazer as necessidades humanas. Agora podemos aceitar esta fórmula que ontem repelíamos, porque agora sabemos que as necessidades humanas são objetivamente supérfluas e que somente se convertem em necessidades para quem necessita o bem-estar e para quem viver é essencialmente viver bem. Eis aqui por que o animal é atécnico: contenta-se com viver e com o objetivamente necessário para o simples existir. Do ponto de vista do simples existir o animal é insuperável e não necessita a técnica. Mas o homem é homem porque para ele existir significa desde logo e sempre bem-estar; por isso é a natividade técnico criador do supérfluo. Homem, técnica e bem-estar são, em última instância, sinônimos. […] (p. 21-22)

O homem como um projeto de ser:

Se os senhores refletirem um pouco acharão que isso que chamam sua vida não é senão o afã de realizar um determinado projeto ou programa de existência. E seu ‘eu’, o de cada qual, não é senão esse programa imaginário. Tudo o que fazem os senhores o fazem a serviço desse programa. E se estão os senhores agora ouvindo-me é porque acreditam, de um ou de outro modo, que fazer isso lhes serve para chegar a ser, íntima e socialmente, esse eu que cada um dos senhores sente que deve ser, que quer ser. O homem é, pois, antes de mais nada, alguma coisa que não tem realidade nem corporal nem espiritual; é um programa como tal: portanto, o que ainda não é, mas que aspira a ser. Dir-se-á que não pode haver programa se alguém não o pensa, se não há, portanto, ideia, mente, alma ou como se lhe queira chamar. Eu não posso discutir isto a fundo pois teria que embarcar-me num curso de filosofia. Somente posso fazer esta observação: ainda que o programa ou projeto de ser um grande financista tem que ser pensado numa ideia, ‘ser’ esse projeto não é ser essa ‘ideia’. Eu penso sem dificuldade essa ideia e, contudo, estou bem longe de ser esse projeto.

Eis aqui a tremenda e ímpar condição do ser humano, o que faz dele alguma coisa única no universo. Advirta-se o aspecto estranho e triste do caso. Um ente cujo ser consiste, não no que já é, mas no que ainda não é, um ser que consiste em ainda não ser. Todo o resto do universo consiste no que já é. O astro é o que já é, nem mais nem menos. Todo aquele cujo modo de ser consiste em ser o que já é e no qual, portanto, coincide, evidentemente, sua potencialidade com sua realidade, o que pode ser com o que, com efeito, já é, chamamos coisa. A coisa tem seu ser já dado e obtido.

Neste sentido, o homem não é uma coisa mas uma pretensão, a pretensão de ser isto ou aquilo. Cada época, cada povo, cada indivíduo modula de diverso modo a pretensão geral humana.

Agora, penso, compreendem-se bem todos os termos do fenômeno fundamental que é nossa vida. Existir é para nós achar-nos de pronto tendo que realizar a pretensão que somos numa determinada circunstância. Não se nos permite eleger de antemão o mundo ou circunstância em que temos que viver, já que nos encontramos, sem nossa anuência prévia, submersos num contorno, num mundo que é o de aqui e agora. […] (p. 38-40, grifo meu)

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-americano, 1963.

Vitor Henrique Paro, 29/02/2020

Se notar alguma ideia ou tema que você considere mal abordado ou que exija maior explicação,
me comunique, por favor. Terei prazer em considerar sua observação.

COMPARTILHE

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *