Um pouquinho de Ortega y Gasset não faz mal para ninguém.
Viver, viver bem, supérfluo, técnica:
[…] O homem não tem empenho algum por estar no mundo. No que tem empenho é em estar bem. Somente isto lhe parece necessário e todo o resto é necessidade somente na medida em que faça possível o bem-estar. Portanto, para o homem somente é necessário o objetivamente supérfluo. Isto se julgará paradoxal, mas é a pura verdade. As necessidades biologicamente objetivas não são, por si, necessidades para ele. Quando se encontra preso a elas se nega a satisfazê-las e prefere sucumbir. Somente se convertem em necessidades quando aparecem como condições do ‘estar no mundo’, que por sua vez somente é necessário em forma subjetiva; a saber, porque faz possível o ‘bem-estar no mundo’ e a superfluidade. De onde resulta que até o que é objetivamente necessário somente o é para o homem quando é referido à superfluidade. Não tem dúvida: o homem é um animal para o qual somente o supérfluo é necessário. Aparentemente parecerá aos senhores isto um pouco estranho e sem mais valor que o de uma frase, mas se os senhores reconsideram a questão verão como por si mesmos, inevitavelmente, chegam a ela. E isto é essencial para entender a técnica. A técnica é a produção do supérfluo: hoje e na época paleolítica. É, certamente, o meio para satisfazer as necessidades humanas. Agora podemos aceitar esta fórmula que ontem repelíamos, porque agora sabemos que as necessidades humanas são objetivamente supérfluas e que somente se convertem em necessidades para quem necessita o bem-estar e para quem viver é essencialmente viver bem. Eis aqui por que o animal é atécnico: contenta-se com viver e com o objetivamente necessário para o simples existir. Do ponto de vista do simples existir o animal é insuperável e não necessita a técnica. Mas o homem é homem porque para ele existir significa desde logo e sempre bem-estar; por isso é a natividade técnico criador do supérfluo. Homem, técnica e bem-estar são, em última instância, sinônimos. […] (p. 21-22)
O homem como um projeto de ser:
Se os senhores refletirem um pouco acharão que isso que chamam sua vida não é senão o afã de realizar um determinado projeto ou programa de existência. E seu ‘eu’, o de cada qual, não é senão esse programa imaginário. Tudo o que fazem os senhores o fazem a serviço desse programa. E se estão os senhores agora ouvindo-me é porque acreditam, de um ou de outro modo, que fazer isso lhes serve para chegar a ser, íntima e socialmente, esse eu que cada um dos senhores sente que deve ser, que quer ser. O homem é, pois, antes de mais nada, alguma coisa que não tem realidade nem corporal nem espiritual; é um programa como tal: portanto, o que ainda não é, mas que aspira a ser. Dir-se-á que não pode haver programa se alguém não o pensa, se não há, portanto, ideia, mente, alma ou como se lhe queira chamar. Eu não posso discutir isto a fundo pois teria que embarcar-me num curso de filosofia. Somente posso fazer esta observação: ainda que o programa ou projeto de ser um grande financista tem que ser pensado numa ideia, ‘ser’ esse projeto não é ser essa ‘ideia’. Eu penso sem dificuldade essa ideia e, contudo, estou bem longe de ser esse projeto.
Eis aqui a tremenda e ímpar condição do ser humano, o que faz dele alguma coisa única no universo. Advirta-se o aspecto estranho e triste do caso. Um ente cujo ser consiste, não no que já é, mas no que ainda não é, um ser que consiste em ainda não ser. Todo o resto do universo consiste no que já é. O astro é o que já é, nem mais nem menos. Todo aquele cujo modo de ser consiste em ser o que já é e no qual, portanto, coincide, evidentemente, sua potencialidade com sua realidade, o que pode ser com o que, com efeito, já é, chamamos coisa. A coisa tem seu ser já dado e obtido.
Neste sentido, o homem não é uma coisa mas uma pretensão, a pretensão de ser isto ou aquilo. Cada época, cada povo, cada indivíduo modula de diverso modo a pretensão geral humana.
Agora, penso, compreendem-se bem todos os termos do fenômeno fundamental que é nossa vida. Existir é para nós achar-nos de pronto tendo que realizar a pretensão que somos numa determinada circunstância. Não se nos permite eleger de antemão o mundo ou circunstância em que temos que viver, já que nos encontramos, sem nossa anuência prévia, submersos num contorno, num mundo que é o de aqui e agora. […] (p. 38-40, grifo meu)
ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da técnica. Rio de Janeiro: Livro Ibero-americano, 1963.
Vitor Henrique Paro, 29/02/2020
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