Há uma crença disseminada, mesmo entre alguns que se acham economistas, de que a extrema subdivisão das tarefas na indústria moderna e na produção de modo geral é que provoca a alienação do trabalhador, fazendo-o perder a noção do todo e agir como um autômato. Fica fácil, com esse discurso, ocultar o verdadeiro papel da exploração na alienação do trabalhador, dizendo que esta é consequência inevitável da modernidade e do avanço tecnológico. Mas não é bem assim [Neba].
Em outro pitaco eu mencionei esta questão, afirmando que a divisão técnica (pormenorizada) do trabalho é, sim, compatível com o trabalho livre e que a verdadeira alienação (cisão) se dá quando o trabalhador é expropriado de sua obra. Dizia também que, sob o capitalismo, é, inclusive, esta cisão que determina a divisão técnica desumana que verificamos hoje. Vamos, agora, fazer uma tentativa de explicitar isso, desenvolvendo dois importantíssimos conceitos da Economia Política marxista: subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital.
Comecemos por elucidar o significado desses qualificativos “formal” e “real”, que levam muitos a acreditar que, no primeiro caso, se trata apenas de uma formalidade, o que absolutamente não corresponde à verdade. Falamos em subsunção formal quando queremos destacar a forma social dessa subordinação do trabalho ao capital, mas se trata de algo tão real e verdadeiro quanto a chamada subsunção real. Como veremos a seguir, melhor seria chamar esta última de subsunção “concreta”, por contraste com a formal, em que se faz a abstração desse concreto e se lança o foco sobre a forma social real de subordinação. Vejamos como isso se dá.
Pensemos o trabalho livre, isto é, na forma social da propriedade dos meios de produção pelo produtor/trabalhador, em que não haja, portanto, a exploração. Nessa forma, o trabalho se subordina ao próprio trabalhador, pois é este o proprietário dos meios de produção. Seu papel é de sujeito (que impõe sua vontade e interesses) tanto com relação ao resultado do trabalho (uma forma social de propriedade sem dependência de outrem), quanto com relação a seu processo (em que ele maneja com autonomia os objetos de trabalho e os instrumentos de produção). Não há alienação, não há separação entre o criador e sua obra. Cada produto pode ser o resultado de um trabalho “inteiriço”, de sorte que as tarefas se conjuguem no processo, de modo a dar origem a uma peça completa de cada vez. (Aliás, essa era a forma que prevalecia nos modos de produção anteriores ao capitalismo.) Nada impede, entretanto, que o produtor, com o objetivo de acelerar o processo, divida tecnicamente seu trabalho, executando uma tarefa determinada em muitas peças, repetindo o procedimento para cada uma das tarefas e depois arranjando os resultados de modo a dar origem a vários produtos completos de uma só vez. Observe-se que não há nada nesse processo de trabalho pormenorizadamente dividido que possa torná-lo alienado. Não é, portanto, a divisão técnica que provoca a alienação, pois em ambos os casos o produtor tem acesso livre ao trabalho e a seu produto.
Em seus inícios, o sistema capitalista mantém o processo de trabalho da maneira que o encontra como herança dos modos de produção anteriores. Ou seja, o trabalho é predominantemente não dividido, vigorando, assim, apenas a subordinação formal do trabalho ao capital. E é essa palavrinha “apenas” que costuma induzir a interpretações equivocadas, como se subsunção “apenas” formal ao capital já não fosse suficientemente trágico para degradar o trabalho e torná-lo alienado. “Apenas” significa tão somente que ainda há outro meio de tornar o trabalho degradante, isto é: além da forma social, há o processo concreto de trabalho em si. Mas, desde o início, já se dá a mudança da forma social: em lugar do trabalho livre, temos agora o trabalho forçado (como vimos em outro pitaco); em vez do trabalhador livre, temos agora o trabalhador alienado. Ponto.
Com o desenvolvimento do capitalismo, essa alienação básica, original, nem sempre visível aos olhos, ganhará forma concreta e perceptível, ao dividir-se exacerbadamente o processo de trabalho, consubstanciando-se naquilo que chamamos subordinação real do trabalho ao capital. A característica distintiva dessa subsunção é que aquilo que se dava formalmente (na forma social) passa a dar-se também concretamente, no desempenho e comportamento pessoal de cada trabalhador. Na subsunção (apenas) formal, não obstante a subordinação social do trabalho ao capital, o processo de trabalho se desenrolava como se o trabalhador fosse o sujeito, a comandar os meios de produção, porque era ele quem concretamente manuseava os instrumentos de trabalho, aplicando o seu ritmo, ao transformar o objeto de trabalho. Agora, na subsunção real, são, concretamente, os meios de produção que comandam o trabalhador, determinando-lhe diretamente as ações e os ritmos do processo mesmo de trabalho, de modo a favorecer os interesses do capital, destroçando assim a subjetividade do trabalhador. Vários são os fatores que levam a essa situação, e complexas as questões que ela suscita. Aqui, apenas menciono de passagem alguns desses pontos, mas você pode encontrá-los mais desenvolvidos em meu livro Administração escolar: introdução crítica, capítulo 2, item 2.
A primeira observação é que o capital não apenas divide o ofício em múltiplas tarefas, mas atribui cada uma delas a executores diferentes. Isso redunda em vantagens técnicas importantes, como: a) a maior especialização, com aumento da destreza de cada executor; b) a economia de tempo em virtude dessa destreza e da poupança do tempo que o trabalhador gastava para passar de uma tarefa a outra; c) a simplificação de tarefas e procedimentos, de modo a se poder inventar novas máquinas que substituam os trabalhadores. Mas há também implicações econômicas, sociais e políticas, que raramente são mencionadas: a) economia na compra da força de trabalho, pois agora o capital pode pagar o mesmo preço por força de trabalho competente em cada uma das tarefas, enquanto antes cada empregado podia ser capaz em algumas tarefas mas inábil em outras; b) maior intensificação do trabalho, pois o tempo que o trabalhador gastava para passar de uma tarefa para outra agora é preenchido com mais trabalho efetivo; c) expropriação do conhecimento pelo capital, ficando o trabalhador “especialista” numa ocupação extremamente restrita e limitando sua própria formação pessoal; d) transformação do trabalhador em mero aleijão, com perda de sua subjetividade, solapamento de sua satisfação na profissão e surgimento de problemas psicológicos; e) maior eficiência da gerência, diante de tarefas mais simples e mais fáceis de controlar.
Finalmente, é preciso lembrar que essa divisão pormenorizada, desastrosa para o trabalhador, não é produto de nenhuma intenção maligna, mas mera consequência da necessidade que o capital tem de se expandir. Numa hipotética sociedade socialista, ou seja, numa sociedade em que vigore a propriedade universal (não privada) dos meios de produção, certamente haverá uma alentada divisão pormenorizada do trabalho (incluindo a presença massiva de máquinas e robôs). Só que, então, sem a subordinação formal (determinada pela forma capital), não haverá necessidade (nem o interesse) de subordinação real (concreta) porque os fins e interesses a guiar a produção e a organização social seriam públicos (de todos), não privados (de um grupo detentor do capital).
Vitor Henrique Paro, 09/02/2020
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